quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A Loura e o Saxofonista

- Seu instrumento toca minha alma -, disse Elisa sem a menor cerimônia. O músico agradeceu com um sorriso amarelo. A frase dela tinha um jeito de cantada, mas naquele dia Lorenzo levara a mulher para assistir ao espetáculo beneficente. A renda seria revertida ao ex-professor de saxofone, que fora brilhante nos anos 80, mas hoje estava esquecido, doente e pobre.
Elisa era jovem e bonita, presumíveis 23 anos. Cruzava e descruzava as pernas em movimentos sensuais. Ele evitava olhar, pois não queria encrenca com Victoria. Mas nos intervalos do concerto instrumental, não conseguia evitar a tentação loura. As mesas muito próximas pareciam pedir que ele as olhasse.
Eu sou mesmo um tolo... aquelas pernas verdadeira emboscada, admitiu. Logo hoje que Victoria insistiu em me acompanhar...
Precisava disfarçar o encantamento por mais uma mulher sedutora. Vida noturna era propícia a encontros furtivos, fugazes e amores proibidos.
Fazia malabarismos para viver bem com a mulher. A rotina dos dois pesava. Havia momentos de carinho entre o casal, mas escasseavam com o passar dos anos de convivência. Aliás, não deveria ter se casado. Fidelidade por obrigação nem sempre cumprida. Considerava a vida de músico propícia à traição. Viagens, ensaios noturnos, turnês européias e apresentações sempre à noite, madrugada adentro.
Professora de língua portuguesa, Victoria estudava muito, lia autores novos, relia os clássicos e ministrava cursos de pós-graduação. Não gostava da noite. Dormia cedo. Quando Lorenzo chegava, ela estava sempre dormindo, cansada das lides do dia, dos planejamentos de aula, dos exercícios que criava para despertar interesse nos alunos.
Mas aquela noite, Victoria insistiu em sair com ele. Era uma mulher sofisticada quando queria. Caprichou no vestuário, maquiou o rosto, fez escova nos cabelos sedosos. Parece que adivinhava algo no ar. Uma intuição feminina.
A loura balançou os cabelos e olhou fixamente quando Lorenzo voltou ao palco. Mesmo com as luzes fortes dos refletores, ele percebeu a intenção da jovem. Estava na hora de solar um trecho de música de jazz. Colocou o saxofone na boca carnuda, fechou os olhos esverdeados e dedicou o solo à jovem desconhecida. Transpirava quando acabou o último acorde. Elisa não se conteve. Ficou de pé gritando lindo, lindo, lindo!
Victoria já olhava para os lados incomodada com a maneira despudorada da moça. Lorenzo procurava ficar alheio aos fatos. Sabia que isso poderia atrapalhar seus improvisos jazzísticos e sua concentração. Detalhista, procurava encontrar a sonoridade ideal de cada repertório.
Hoje, não! O capricho de Victoria não poderá estragar a performance que espero... Não me faltava mais nada! A apresentação era dedicada ao primeiro mestre. Não podia falhar em sua homenagem.
Lorenzo pressentia o obstáculo que viria agora: sua apresentação acabara. Ajeitou com as mãos seus cabelos presos num rabo-de-cavalo, a camisa ensopada no corpo atlético incomodava. Sentia calor. Que fazer com a loura estonteante e conquistadora?
Não queria perdê-la... Desafiante trocar com ela palavras, Victoria por perto. Aliás, pertíssimo... Mostrar à jovem que poderiam se ver em outro lugar. Como fazer?
Quando Lorenzo saiu de cena, Elisa não perdeu tempo.
- Gostaria de te dar os parabéns. Você tocou muito! Sou tua fã. E além de grande músico, você é muito charmoso, um gatão de meia-idade! Vi que você está acompanhado. Vamos sair amanhã? Pega este guardanapo de papel, escrevi nele o número do meu celular... depressa, cara, sua mulher vem aí... - falou a loura, com a voz meio ofegante.
Victoria interrompeu o papo, chispando os dois com o olhar.
- Vamos embora, Lorenzo. O que esta garota vulgar queria? - indagou, nervosa. Espumava de raiva.
- Era apenas uma fã, Victoria. Bebeu demais -, falou Lorenzo sem a fitar, olhos baixos. - Ah, estava mesmo na hora de irmos embora, estou cansadíssimo! - disse, sem mostrar emoção.
Suspirou aliviado ao perceber que a mulher não ouvira a conversa. Não queria baixarias! Pegou o carro no estacionamento e chegou logo em casa.
- E então, o show te agradou, Victoria? - Ela fingiu não ouvir. Não teceu comentários, visivelmente chateada.
No banho demorado, Lorenzo ficou lembrando da jovem, de suas pernas sedutoras, os cabelos lisos e louros. Não sabia sequer o nome dela. Aos 46 anos, estranhou que a exuberante loura tivesse mencionado o termo "gatão de meia-idade". Estou tão acabado assim? Observou cada detalhe do seu corpo enquanto se ensaboava e se achou muito másculo, viril e inteiro. Poderoso!
O número do celular com ele... Será que telefono? - pensou, excitadíssimo.
No quarto, Victoria já dormia como um anjo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Lembrar-se

Ela me olhou com seu olhar oblíquo querendo desvendar-me inteira.
- Você é muito bonita, disse-me com naturalidade.
Aquele elogio, dentro de um elevador cheio, surpreendeu-me.
- Obrigada, são seus olhos que filtram - respondi, constrangida, não encontrando as palavras certas.
Ela ainda estendeu as mãos pequenas quando o elevador parou no 10º andar tentando não me deixar descer.
- Fica!
A mãe chamou a filha e lhe falou enfática:
- Você tem hora marcada com o médico. Deixa a moça passar.
Ela fez um muxoxo e revirou a cabeça em minha direção.
As pessoas se entreolharam impacientes com a cena incomum. Todas apressadas. Alguém segurou gentilmente a porta do elevador social. Não me lembro bem. Estava aflita: timidez e emoção de ter despertado tais sentimentos se mesclavam.
Desci, enfim, com uma sensação de alívio e desconforto.
Noutros tempos não teria me importado.
Não sei se a tarde melancólica me trouxe o passado. Queria mesmo voltar ao tempo e amenizar, com artifícios do sonho, algo que ficara no ar daquele encontro.
Pedras coloridas - esmeraldas, jades, rubis, turmalinas - saem do baú da minha infância. Gemas sedutoras! Tenho temor dos piratas com tapa-olho. Medo dos heróis orientais e que se escondem em qualquer lugar e atravessam paredes e portas. Peço para mamãe deixar o abajur ligado quando vou dormir.
A amabilidade, a doçura e a ingenuidade daquela menina-moça Down, no elevador, trouxeram música agradável para meus ouvidos descrentes.
Eu daria tudo para ouvi-la outra vez. Escutar o bálsamo de sua voz sem censura. Sua lógica sem perspectiva para nós.
Causava-me calafrios sua sensibilidade extremada. A percepção de uma beleza que não era minha. Vinha de outros rostos, talvez de novos mundos. Viagens imaginárias. Mares e mergulhos. Nosso único encontro parecia um presságio de amargura ou de plenitude. Mas algo mudara em mim para sempre.
- Venha! Fale, explique o que está por trás das estrelas e da luz do sol. Conte-me o que viu. Há quanto tempo não me dizem que sou bela...
- Volte! - agora sou eu quem pede, imploro.
- Termine essa história mal-acabada.
- Como é o seu nome?
- Encoste a cabeça sobre os meus ombros. Quero tocar-lhe os cabelos escorridos e negros.
- Posso contar histórias se você gostar. Trechos das "Mil e uma Noites", a "Branca de Neve", que sei de cor, ou os contos dos irmãos Grimm, para encantar seus olhos doces e delicados.
O que farei com a imensidão dos pensamentos em desalinho? Se você não voltar...
E, assim, o meu coração ficou tão absorto em sensações quanto um coração pode ficar.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Canto porque Falo de Amor

Canto porque existes
e meu coração que pulsa
me faz hoje inesquecível...
Quero ser teu mar
com suas vagas
a murmurar mistérios.
Quero ser a areia branca
a beijar teus passos.
Sou a sedução
a te envolver no espaço infinito.
Canto porque minha voz
é alma em notas musicais.
Canto porque falo de amor.
E de falar de amores, vivo.
E do teu amor outonal
me alimento.
Sou tua namorada
e bem-amada.
Sou tua mulher
a repartir histórias de vida.
Quero ser o vento
a dispersar lembranças tristes.
Quero ser a flor
que não perde as pétalas
na ventania.
Quero ser o anjo benfazejo
a te trazer ternuras.
Ah, eu quero ser tua estrela
a brilhar na noite escura.