quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Beduíno

Se eu soubesse da tua partida,
talvez fosse outra minha sina.
Se eu soubesse
que era teu último abraço,
eu te apertaria com braços e laços
para que não desfizesses os nós
das ternuras que nos dávamos.
Agora estou sem braços para abraçar.
Se eu soubesse que seria
teu último beijo,
eu te daria a entrega
do amor incondicional.
Se eu soubesse do adeus repentino,
tocaria tua alma inteira
e ficarias perpetuado
nas minhas mãos pequenas.
Mas estou sem mãos para acariciar.
Foste sem olhar para trás,
com a coragem dos aventureiros.
Foste de repente como um beduíno
à procura de areias longínquas,
longe das histórias já vividas.
És um nômade com sonhos e ilusões,
a querer novos amores e venturas.
Inútil que eu me iluda agora.
Dou tempo à dor e acalento a perda,
o coração apertado,
os olhos doloridos.
Pois és um beduíno,
sei que jamais irás voltar.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Pássaros Vorazes

- Você é a única mulher da minha vida, meu amor -. Ricardo sempre dizia frases de efeito e românticas quando ela fazia cenas de ciúmes. Mas nem sempre era convincente nas afirmações e no tom de voz meio irônico.

As mulheres do passado persistiam em deixar recados reticentes e insinuantes na secretária eletrônica. Escreviam e-mails que Ricardo escondia em arquivos secretos no computador. Falavam através de chats de conversação. Deixavam mensagens saudosas no Orkut e recados no celular.

Suzana se irritava, principalmente quando ele vinha com jargão do tipo "você vê cabelo em ovo"... Afinal, ela não tinha problemas auditivos e apesar dos óculos, via muito bem. Não inventava coisas. Sempre fora observadora, curiosa e detalhista. Por ser mulher, conhecia o assédio feminino.

Ricardo não lhe dava sossego. Pelas fotografias desbotadas e amareladas pelo tempo, tinha sido lindíssimo. Um verdadeiro Apolo. Continuava um homem atraente e interessante. Adorava contar histórias de sua vida e como tinha histórias! Algumas inusitadas, pitorescas e excêntricas, sempre com celebridades. Tinha vivido 13 anos em Londres, viajado muito e possuía um currículo de causar inveja.

Instável, porém, Ricardo ficava sujeito a desagradáveis variações de humor. Talvez por ter enxaqueca crônica. Mas com as amigas e ex-namoradas era a doçura em pessoa. Tinha o péssimo hábito de chamar todas elas de "querida". Às vezes até de "meu amor". Ele dizia as mesmas palavras pra ela e Suzana não sentia a mínima diferença de tratamento, procedimento lamentável entre dois amantes. Era o fim da descortesia. Nunca havia passado por situação semelhante. Isso causava uma tensão constante, que ele não alcançava. Ricardo a esmagava lentamente com seu modo desajeitado e áspero de amar uma mulher como Suzana.

Suzana tentava se controlar e agora adotava outra estratégia. Fingia que não ouvia. Na realidade, ficava mesmo possessa com sua gentileza melosa de elogios fáceis a qualquer rabo-de-saia.
Não sabia como proceder diante daqueles pássaros vorazes que gravitavam como corvos agourentos no entorno de Ricardo. Todas em busca de prazer fugaz, de um rolo amoroso sem compromisso. Mulheres desfrutáveis, despudoradas, fáceis e livres. Umas saradas, burras e bonitas. Outras gastas, inteligentes e gordas.

– É isso mesmo que lhe digo, querida Suzaninha, seu ciúme é um câncer incurável. Você toma atitudes totalmente irracionais e fantasiosas. Você cria fantasmas do nada. Fico bastante chateado. Você devia confiar mais em mim. Já conversou sobre o assunto com sua analista?

- A culpa é toda sua, Ricardo, que me dá motivos. Não aguento mais este joguinho de sedução barato com as mulheres. Será que é baixa-estima? Necessidade de provar que é macho? Você já me traiu?

- Nossa, que interrogatório! Nunca te traí, Suzana. Juro. Por que me faz tanta pergunta?

- Seja sincero, Ricardo.

- Sou culpado por preservar minha individualidade? Se você fosse menos inteligente, quem sabe teria atitudes mais sensatas...

- O quê? Você preferia que eu acreditasse em tudo que você diz sem questionar? Agora minha inteligência incomoda você?

- Sabe, Suzana, detesto mulher manipuladora. Está para nascer quem vai me controlar. Nem minha falecida mãe - que Deus a tenha em bom lugar - me controlava. Ameaçou evocar passagens da infância perdida e esquecida nos baús da memória. Desistiu, aborrecido com o rumo da prosa.

- Tem gente que gosta de ser controlado, meu querido. Voltando à minha inteligência, sei que você nunca teve paciência com gente burra. Liberdade, meu anjo, pressupõe respeito com a pessoa amada. Não se pode ter tudo o que se quer. Preciso lembrar que você não é mais aquele homem disponível do passado? Ou ainda é? Não dá para ficar em cima do muro, meu bem.

- Vamos mudar de papo, meu amor. Chega de discussão tola. Não vamos passar a noite falando sobre o sexo dos anjos... Parece uma esgrima mental.

- Esgrima mental? Ricardo, não quero lutar com você. Detesto briga. Quero viver em paz. Paz e Amor como na época dos hippies. Quero ser tratada como uma flor, mas você me aperta com força. Esmaga minhas melhores pétalas.

- Para de usar metáforas. Olha, gravei o capítulo da minissérie de ontem. Vamos ver juntinhos aqui no sofá da sala? Viu como eu penso em você? Faço todas as suas vontades! Gosto tanto quando você está feliz. Seu sorriso, Suzie, é tão lindo...

Apesar de não gostar de brigas inúteis, Suzana preferia esgotar os conflitos até torná-los digeríveis. Ele saía sempre pela tangente ou partia para o ataque, aos uivos... quando não encontrava saída. Suzana ficou na sala ruminando os pensamentos desalinhados. Gostaria de ter continuado a conversa. Sentiu-se frustrada com as rotas explicações que ouvia. "Como sou tola..."

Esforçava-se constantemente para evitar desgastes na relação amorosa, mas restava muito a fazer. O cotidiano era difícil e tinha o sabor de café requentado. Suzana gostava do glamour das cenas de cinema, beijos ardentes, sentir o coração bater como nos primeiros dias de namoro.

Abriu uma cerveja belga bem gelada. Há tempos não experimentava marca tão saborosa.

Ricardo dormia, o que não era hábito, assim tão cedo. Será que fingia? Sempre varava a madrugada vendo filmes que alugava no vídeo da esquina. Películas de ação, suspense, policial, humor nonsense. Filme cult assistia com Suzana, ambos amantes da sétima arte.

Suzana chegou a lamentar o sábado decepcionante e interminável. Teria percebido sinais de mentira no rosto de Ricardo? Recordou que ele assumia expressões inquietas quando questionado. Ou ela exagerava? Que ânsia é esta? Que teria afinal?

Altas horas da noite, o telefone da sala toca estridente. Uma voz sussurrante de contralto chama por Ricardo. Suzana diz que ele está dormindo. A mulher não deixa recado. Ela insiste e a pessoa desliga rapidamente.

Cambaleante de sono, ele se levanta sobressaltado com o som alto da campainha do telefone. Tenta balbuciar algo e fica engasgado com a própria saliva.

Suzana nunca mais voltou a ver Ricardo.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Deixa-me Ser Tua

Deixa-me ser tua
porque já sou:
sentimento, corpo e alma.
Não há mais jeito,
meu coração está contigo.
Entreguei o melhor de mim,
não há como negar,
não há como impedir.
Deixa-me ser tua
nem que seja por poucas horas,
por uma tarde, uma noite
um mês, um ano,
por uma vida,
por toda a eternidade.
Tudo é misterioso e mágico
como a vida e a finitude.
Mas deixa-me ser tua.
Não percebes que já percorri
com meus dedos
teu corpo idealizado?
Não sentes que já te beijei
em sonhos teu corpo inteiro?
Não vês que o som da tua voz
está gravado para sempre
nos meus ouvidos?
Nada mais podes fazer,
a não ser permitir.
E me querer também
just a little, little by little.
Não sentes a química
que nos envolve?
Este desejo é loucura
e é vida.
Tinha me esquecido
que viver é muito bom!
Não percebes minha sede de viver?
Deixa-me ser tua...

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Olhos de Madona

Teus olhos de madona
têm doces mistérios
e dimensões do universo.
Não sei se teu olhar pungente
cativou-me à primeira vista.
Ou são detalhes luminosos
de um amor que me avassala
e me devora a mente.
Não fosse isso o bastante,
tua boca é de uma beleza ímpar.
Lábios que enlouquecem,
reveladores de histórias
que não são minhas.
É difícil a um simples mortal
ter controle do corpo
e coração.
Que queres de mim, madona?
Faria coisas por ti
que assombrariam o mundo.
Basta que me peças.
Deixa-me te mirar de novo.
Pudesse impedir que fosses
tão-somente a fantasia,
o sonho e o delírio.
Mas quem sou eu
tão sozinho e derrotado
por teu sublime olhar de madona?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Sonhos Partidos

Desço aos labirintos
da tua alma
e vejo a fragilidade
do mundo que construíste.
Quero trazer algo
que te transcenda,
mas não deixas.
Há um quê de intransponível
na viagem obscura
e solitária.
Há sonhos perdidos.
Vejo ternuras partidas.
Choro e me angustio.
Grito para que me escutes,
mas teus ouvidos absortos
se recusam.
Volto, então, ao labirinto
como se pudesse te livrar
de tantos nós.
Me entrelaço e me embaraço
na tentativa inútil
de embalar teus sonhos frágeis.
Na tentativa quase estéril
de que acredites
outra vez na vida.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Amante do Silêncio

Evitou que a monótona ausência de som interferisse nos seus pensamentos. Queria clareza. Distinguir sutilezas no tom de voz de Marisa. É difícil entender a alma feminina. Ela tem se distanciado de mim. Talvez tenha interesse por alguém, mas não vai me contar.
Gilberto caminhava do quarto para a sala, da sala para o quarto, sem encontrar ocupação nem sossego. Só pensava em Marisa. - Fica em silêncio, meu querido -, dissera ela na última noite de amor. - Gosto de ficar quietinha depois do orgasmo... - Isso não era comum nas mulheres, já tivera várias. Gostavam de falar depois do gozo. Marisa, de uns tempos para cá, se tornara assim: amante do silêncio. Acho que fingia tranquilidade, estava alheia. Não sentia seu coração bater, faltava algo. Faltava entrega.
Não sabia como agir diante daquele monstro que surgia sem nome e aparência. Se pelo menos ela se abrisse comigo... Será que estou preparado para o fim do relacionamento?Posso até provocar uma conversa, mas como vou reagir se Marisa quiser um pretexto para terminar?
Cheio de dúvidas, Gilberto saiu de casa. O amor é a coisa mais triste quando se desfaz... De quem era mesmo a música da MPB que cantarolava com insistência? Entrou no bar da esquina, onde não era figura muito conhecida. Ultimamente, Marisa escolhia os lugares e apreciava ambientes sofisticados.
Pediu uma bebida destilada. O garçom trouxe uma dose dupla de uísque nacional. Bebeu apressado, sentiu uma espécie de torpor semelhante ao delírio. Ali ficou no balcão, remoendo os pensamentos e olhando o celular que não tocava. Mais uma dose: a bebida apertou a garganta. Seus olhos desfocados buscaram o caminho de casa. Pagou a conta e andou cambaleando até o apartamento. Custou a achar a chave no bolso da calça esportiva.
No telefone fixo, uma mensagem de Marisa dizia que ela o tinha procurado. Sem encontrá-lo, marcara um encontro com uma amiga dos tempos de Universidade. Que colega era essa sem nome? Por que não comentara aonde iam? Por que não ligara para seu celular?
Sentiu-se traído pelas circunstâncias. Enganado por Marisa e por sua nova parceira da noite. Tentou dormir, estranhou o travesseiro. Lavou muitas vezes os dentes para retirar o amargor da boca deixado pelo uísque.
O sono desaparecera. Sabia que era perigoso tomar calmante com bebida alcoólica. Levantou. Ligou a tevê à procura de um filme atraente. Não encontrou nada que o motivasse: programas banais de auditório, cinema da pior qualidade com finais previsíveis. Colocou um CD de Carlinhos Brown. Muita percussão para sua cabeça estressada. Desligou o som.
Acendeu um cigarro. Há tempos não fumava. Marisa implicava com sua boca de tabaco. Em quinze minutos, fumara meio maço e estava mais insone e acelerado. Voltou para o quarto e gritou.
O grito ecoou na madrugada. Deu vários gritos estridentes. O interfone começou a tocar. Provavelmente era o porteiro. Não atendeu o chamado. Berrava sem controle. Minutos depois, ouviu passos no corredor. Alguém bateu à porta social. Não fez menção de abri-la. A voz lhe pareceu familiar.
— Gilberto, o que aconteceu? Os vizinhos estão reclamando. São onze horas da noite — falou Sr. Elias, o síndico do prédio.
— Gilberto, você está passando mal? Abra a porta! — disse em voz baixa. Não obtendo resposta, o síndico desceu até seu apartamento pelas escadas, arrastando os chinelos rotos e mambembes. Ameaçou chamar a polícia. Gilberto não se importou com o fato, a cabeça rodando, rodando, rodando... Deitou na cama de colchão de molas com saudades de Marisa.
Acordou com náuseas. O lençol em desalinho dava um ar estranho na sua visão matinal. Marisa não havia voltado. O que fazer?
Tentou o celular da mulher. Estava na caixa postal. Deixou recado. Ligou de novo. Deixou outra mensagem: desta vez mais contundente.
Não sabia como proceder. Será que comunicava à polícia? Quem sabe Marisa tinha sido vítima de sequestro relâmpago? Ou havia sido atropelada e estava no Hospital Miguel Couto? Se ao menos soubesse o nome e telefone de sua amiga de Faculdade!
Passados longos 15 minutos de indecisão, Marisa põe a chave na fechadura. Entra em casa e a expressão de seu rosto é indecifrável. Está impecavelmente vestida e maquiada. Sua roupa é nova. Aliás, roupa de grife.
Olha para Gilberto e diz: — Meu amor, você ainda não foi trabalhar?

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Fatias de Céu

Minha alma vive
nos desembaraços.
Voa entre o frio da noite
e a delicadeza da manhã.
Volto a voar.
Abandono os conceitos.
Perdi a prudência
à espera de um convite teu.
Beijo a memória
do primeiro encontro.
Sei que fazes-me falta.
Devagar detenho
tua mão ansiosa.
Queria tão-somente
que me fitasses o rosto
com a ternura dos amantes.
Gostaria que viesses
ofertar-me razões para viver.
O certo é que nunca me falaste
com a admiração de hoje.
A noite é um mar
que me envolve de encantos
e êxtases.
E na eternidade
dos nossos corpos entrelaçados
transitam fatias de céu
e pedaços de estrelas.
Mas juro que
já não sei agora ao certo.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Menos Gris

Quando eu não puder te escutar
quem me chamará de anjo barroco?
Quem me dirá que sou estrelinha
caída de um recanto do céu?
Quando tua voz calar
que restará da ternura
que me dás?
Em que recôndito do mar
tua musicalidade ficará perdida?
Não é apenas a tua fala
que é fonte do meu encanto.
É nela que eu bebo minha criação,
é nela que tudo faz sentido.
Tua voz é meu cântaro:
misterioso depositário de dores,
esperanças envelhecidas,
embora ainda sonhadas.
É cedo para me falares de adeus.
Fala-me de chegadas
e encontros.
Fala-me de verdades
mesmo inventadas.
Fala-me de coisas
que preciso ouvir
para acreditar de novo
no amor possível.
E, quem sabe,
ser um pouco menos gris.