sexta-feira, 13 de março de 2009

O Desaparecido

Ela virou-se bruscamente à procura do anel de noivado. Tinha certeza de tê-lo colocado à mesinha de cabeceira na hora de dormir. Pronto, o que vou dizer ao Rubem? Vasculhou o quarto inteiro, debaixo da cama e nada. Era uma linda jóia de família, com um brilhante incrustado formando um delicado desenho geométrico. Rubem tinha proposto:
— Vamos morar juntos, Aimée?
— Está bem, vamos.
No dia seguinte, ela disse para Rubem:
— Tenho dúvidas, querido.
Mesmo assim, Rubem lhe presenteara com o anel, uma relíquia de sua bisavó materna, olhos esverdeados e espanhola de Andaluzia. Ele não a conhecera, mas, segundo familiares, era considerada uma santa, ajudava a todos sem distinção e tinha uma sabedoria advinda talvez dos livros sagrados que lia desde pequena. Havia aprendido o alfabeto, noções de ciências e filosofia, o que era considerado raro naquela época em que as mulheres somente cozinhavam, cuidavam da casa e gestavam muitos filhos. Montava a cavalo em total liberdade nos pátios e nas cercanias do sítio onde vivia.
Rubem gostava de pensar em sua bisavó. Uma mulher misericordiosa e moderna para os padrões espanhóis do século XIX. Pelos retratos amarelecidos que recebera de herança, Aimée lembrava fisicamente sua bisavó, María Pilar. Talvez o meio sorriso, o jeito de menina, o feitio da sobrancelha espessa, os cabelos ligeiramente ondulados, o olhar enigmático e inteligente.
- Nossa, será que estou tão apaixonado assim? Não estou fantasiando Aimée?
No quarto de dormir, Aimée continuava procurando o anel. Sabia que seria uma tarefa difícil se não o achasse. Rubem não a perdoaria! Ninguém havia entrado em seus aposentos. Ritinha, a empregada, era de total confiança da família. Não começara a limpeza da casa, nem servira o café da manhã. Todos dormiam, a casa estava silenciosa. Os primeiros raios de sol penetravam através das cortinas transparentes e esvoaçantes. Cansada de procurar, vestiu-se e desceu as escadas.
Encontrou Ritinha preparando o desjejum. Dirigindo-se a ela, cumprimentou-a, dizendo:
— Você, por acaso, viu o anel que Rubem me deu de presente?
— Não, Aimée, não arrumei os quartos. Só se você esqueceu aqui na cozinha, no lavabo ou na sala. Você já procurou em todos os lugares da casa?
— Ainda não. Vou primeiro comer. Seu café está cheiroso... Você assou bolo de aipim com coco? Ah, faz um suco de laranja pra mim?
— O bolo ainda está quente! Toma aqui seu suco, tem pão fresquinho, geléia de figo, queijo curado e presunto. Você quer ovos mexidos?
— Nossa, Ritinha, você quer me ver gorda?
— Você está muito magra, Aimée! Pode ganhar uns três quilinhos... Eu é que tenho que tomar cuidado. Outro dia o Floriano me disse que eu estava bunduda!!!
— Muita audácia dele, Ritinha. Ele com aquele barrigão. Só o que faltava...
Aimée comeu sem pressa, estranhou que seus pais ainda dormissem até àquela hora. Cláudio, seu irmão caçula, não tinha hora para nada mesmo.
— Rita, você viu meus pais hoje?
— Penso que eles acordaram muito cedo, o dia está lindíssimo, devem ter ido passear de bicicleta ou foram comprar verduras frescas para o almoço. Logo estarão de volta! Seu pai não dispensa meu café.
Enquanto saboreava o bolo de aipim ainda quente, Aimée ouviu um barulho estranho vindo da sala.
Em seguida, um homem apareceu surpreendendo as duas.
— O que você quer aqui? — disse Aimée tentando se mostrar segura.
— Eu não sou um homem.
— Não entendi sua resposta.
— Gostaria da sua saudação. Você não recebeu bons hábitos?
— Se é só isso que você quer, eu cumprimento você. Bom-dia! Gostaria que fosse embora.
— Estou com fome. Posso me sentar e comer com você?
Para ganhar tempo, Aimée fez sinal para Ritinha e esta trouxe uma caneca, pão, manteiga, leite e a garrafa térmica com café ainda tinindo de quente.
Em segundos, o senhor devorou o café da manhã. Parecia mesmo faminto e cansado. Talvez não tivesse dormido, estava sujo, mas não passava medo. Tinha olhos virtuosos, suas mãos magras tremiam.
Lá fora, o som de uma bicicleta derrapando. Os pais voltavam. Seria difícil entender o que se passava na copa-cozinha, aquele homem maltrapilho lanchando ao lado da filha.
Madalena entrou afobada acompanhada do marido, Araújo, as faces afogueadas pelo esforço das pedaladas.
Quando olhou o velho perto de Aimée, seus olhos encheram-se de lágrimas:
— Milagre, milagre! Tio Gregório voltou! Tio Gregório voltou! — gritou quase de um fôlego só. Escapou-lhe do peito um profundo suspiro.
O ancião fez seu único gesto: entregou o anel de noivado a Aimée. Estava todo sujo de terra e de lama.
Aimée, perplexa, não entendeu o regresso do seu tio-avô, desaparecido há três anos e como o anel de brilhante havia parado em suas mãos.
Mas esse mistério faz parte de uma outra história.

Um comentário:

Unknown disse...

Alice!!!! Simplesmente maravilhoso, o conto!!!! Amei de paixão. Adoro quando vc escreve pra valer. Esse tem alma, é especialmente magnífico. Meu favorito. Aqui..., me liga para conversarmos mais a respeito desse conto ok. Beijos, Márcia